Ao chegarmos numa comunidade onde a grande maioria possui apenas alguns dentes, vamos achar diferentes aqueles que tiverem todos os dentes. Nossa mente costuma funcionar desta maneira; buscamos uma maioria para entendermos o que chamamos de normal ou de anormal na sociedade. Isoladamente o indivíduo também tem seu referencial que vai perdendo a partir de pequenas mudanças, que somadas levam o sujeito a deixar sua velha imagem para internalizar uma nova. Ele perde um dente, outro dente e vai se acostumando com a ideia de não possuí-los, até que um dia perde todos.
Com os dentes perdidos perde-se também a estética, o poder de mastigação, o poder de digerir os alimentos que não são mastigados direito e tantas outras perdas, mas que aos seus próprios olhos ficam parecendo uma coisa normal. Tudo isto, bem que podia ser uma invenção minha para justificar o que quero escrever sobre o tema acima, que acho deveras interessante, mas infelizmente isto não é nenhuma invenção, é pura verdade.
Na maioria das cidades do interior do Brasil e também no campo, não há quase ninguém que possa arcar com o preço da prevenção de doenças odontológicas, muito menos com tratamentos caros como os que infelizmente a classe média tem sido obrigada a pagar para ter seus dentes saudáveis.
O problema dos dentes torna-se "fichinha", se visitarmos algumas regiões brasileiras onde comer é privilégio de poucos.
Como no caso da perda dos dentes - embora muito mais grave - as famílias vão se acostumando a comer cada dia menos, até que um dia o provedor chega e ordena, como o fez Paulinho da Viola em sua música - Grande Paulinho: "pode guardar as panelas que hoje o dinheiro não deu!"
Mas aquele sentimento de impotência, de indignidade e de indignação esboçado por aquele pai no começo da fome vai também se repetindo, até que um dia ele e seus sentimentos começam a parecer com as pedras, que rolam morro abaixo e não se machucam, se esfolam mas não choram. É uma cronicidade que não permite que ele sinta o mesmo que sentia antes. Pior para seus filhos, que não conhecendo outra condição, não podem formar conceito sobre o que é comer bem, comer mal ou passar fome. E assim eles vão levando a vida, muitas vezes até colocando a culpa em Deus, utilizando aquele velho termo que estamos cansados de ouvir: "Deus quis assim e se ele quer, estamos bem assim mesmo". Elas aprendem a perceber o mundo pelo avesso, onde o homem tem que viver de favores e abrigado a trocar seus votos por promessas que não servem para nada, além de cronificar também esta louca forma de ver Deus e o mundo.
A política também ao longo dos anos foi se cronificando e muitos políticos já não coram o rosto quando fazem suas promessas mentirosas ou tomam conhecimento de que seus nomes estão expostos na mídia. As verbas - ricas verbas - que deveriam ser usadas para o implemento de socorro ao povo brasileiro, servem, com algumas exceções, somente aos próprios administradores do país, que recebem da população uma espécie de procuração em branco, numa demonstração de grande confiança que não tem sido correspondida. Vejo bem perto de mim, a calamidade que arrasa a dignidade dos humildes e joga para os andares superiores toda a fortuna que bem poderia servir para curar as doenças e gerar educação. Estou me referindo às doenças das instituições como: hospitais, escolas públicas, setores responsáveis pela segurança e construção de estradas etc. Os órgãos públicos estão sempre muito doentes.
A doença do povo começa com a impossibilidade de se aculturar e o homem culturalmente excluído não sabe opinar; ele é feito refém por uma cúpula que sabe muito bem que voto de rico e de pobre tem o mesmo valor.
Se resolvêssemos listar os nomes de tudo que achamos crônicos, passaríamos horas e horas escrevendo, porque muitas coisas da vida precisam ser crônicas para suportar a sobrevivência. Em última análise devemos dizer que nos salvamos ou morremos na agudez ou simplesmente nos deixamos viver na cronicidade – nem vivemos nem morremos.
Se uma pessoa possui uma doença aguda, ela vai solicitar socorro, utilizando seu choro e seus gritos, incomodando aos que vão deixá-la morrer ou socorrê-la, mas se ela possui uma doença crônica, não vai gritar, porque não vai doer o suficiente para incomodá-la muito nem tanto aos outros. Possivelmente vai carregar a doença de forma adestrada como um animal que carrega a carga e faz desta tarefa um meio de ganhar o pouco que precisa para sobreviver. Na cronicidade, mesmo com a doença a vida vai parecer “normal”
Tudo que expus até agora sobre o tema, me dá uma certa garantia de que precisamos agudizar nossos problemas para sermos vistos e acudidos. Precisamos reclamar um pouco mais para que sejamos vistos como verdadeiros cidadãos.
Do jeito que as coisas andam é possível que um dia não tenhamos mais nossas florestas, as escolas estarão aos pedaços, os hospitais públicos estarão em ruínas, as notícias sobre a fome tomarão conta dos noticiários e só de uma coisa teremos a certeza: haverá sempre um beija flor a contribuir com a contenção do fogo na floresta, ainda que seja apenas um jeito de demonstrar que ele nunca desiste.
Apesar dos crônicos a floresta haverá de nascer novamente!