Nos anos 60, quando ainda muito jovem, fiz o primeiro contato com portadores de hemofilia, mas ninguém sabia do que se tratava, nem mesmo a gente ouvia alguém usando o nome hemofilia. Na cidadezinha onde eu morava aquilo era simplesmente uma “doença de sangue”. Mas que doença? Ninguém sabia explicar, e como ninguém explicava, criavam-se em torno daquela condição, verdadeiros mitos.
Muitos achavam que era obra de Deus, outros entendiam que nós humanos somos castigados pelos erros dos nossos antepassados – os descendentes nasceriam possuidores de uma dívida que nunca fizeram – e muitos outros acreditavam que os problemas de saúde para os quais a medicina ainda não conseguia êxito, poderiam ser resolvidos pela reza, promessas e outros expedientes místicos. Os mais radicais acreditavam que todo sofrimento que vinha de algo desconhecido, deveria mesmo ser obra do diabo.
Tudo que não conseguimos explicar nos causa muita angústia e um dos mecanismos que usamos para combater nossas angústias, pode ser tentar explicar as coisas através de algum ser divinal, que está muito além de nosso conhecimento; assim tudo se acomoda melhor porque transferimos a tarefa de estudar o assunto para outras instâncias. ”Deus é que quis assim e acabou”, ou, “isto é obra do diabo”, e ainda, “Deus dá o frio conforme o cobertor” e por aí vai. Temos a sensação de que de fato o problema acaba quando transferimos a responsabilidade.
Mas felizmente a medicina como ciência não costuma transferir responsabilidade, ela precisa buscar explicações e precisa também chamar para si a responsabilidade de desvendar os mistérios que envolvem a tão complicada “máquina” humana.
Até chego a acreditar que o pedaço do caminho que ainda não percorremos para chegarmos ao equacionamento total do problema do hemofílico, não é por culpa da ciência e sim pelas dificuldades políticas, um campo onde as competições ocorrem mesmo quando o assunto é a vida humana.
Graças a tantas desavenças no campo político é que os hemofílicos ainda “correm atrás do prejuízo”, quando já deveriam ter como líquido e certo o direito de nascer e crescer sem tantas sequelas deixadas por um mal que nem mesmo deveria mais ser chamado de doença.
Tudo continua a depender de dois fatores: o fator de coagulação e o fator político.